domingo, 30 de dezembro de 2018

PASSA MAIS TARDE - Sílvia Helena Sangirardi

quando penso, acho esquisito
fico perdida no breu
vou levando enquanto der
mas desconfio que é mito
vai ver, é problema meu
uma neurose qualquer
mas será, que homem nasceu
pra ser feliz com mulher???

TEMPO - Alexandra Vieira de Almeida

Crianças gritam abismos,
mas o tempo é medido
nas cordas do vento.
A passagem eterniza-se
nas cores do olhar.
Voam lírios, madressilvas...
E dançam ao sol, ao vento,
à chuva...
O silêncio acalma os tempos,
de sonhos despertos, incompletos,
de folhas de jasmim.
Corações presos somente
pelas linhas do tempo
e pela sombra que tece o ser
que não é.
Elas buscam um céu, nuvens.
Mas o sol derrete estrelas,
que se apagam na memória.
O lapso do tempo é curto,
sem volta.
E elas olham para ele
como para as ondas do mar.

ESPELHO QUEBRADO - Flávio Petrônio

Há dias em que a vastidão da existência
é maior que aquilo a ser imaginado,
porque tudo o que vem a ser delimitado,
ao ser sentido, insinua outra abrangência.

A nostalgia permite a transcendência,
entre dois universos, lado a lado,
um na impressão de ser observado
e outro o refletindo com incoerência.

Das sobras do visual ao que é sentido,
mendigo aquilo que me é permitido
para a poética não compor um fim.

Assim como dois lados parecidos,
é a sonora dos risos e gemidos
no abismo que vou conduzindo em mim.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

A INDESEJADA – Darcy Ribeiro

Aí estão eles, os da terceira idade.
Gregários, vivem aos bandos.
Sentados, jogando cartas, andando devagar.
Conversando pretéritos assuntos.
Olhando tristes os outros viverem.

Antigamente, todos seriam avós, vovozinhos.
Hoje, são sogros, os chatos dos sogros.
Uns são viúvos, outros largados, poucos.
Muitos deles, os mais, ainda casados.
As mulheres duram demais.

Órfãos de seus filhos, ocupadíssimos.
Não reclamam, resmungam disfarçados.
Estão todos aflitos, na espera
Da indesejada, que tarda.
Tarda, é certo, mas virá. Inexorável.

LIGA DE SALAMANDRA – Ana Pinto

Deixei de estar – sou o ocaso abaixo
à terra alta, a lava
que não regurgitou o cúmulo
a figueira maldita
que escondeu os nados.
Sou portanto, invisível, aprendi
o princípio da lenha ardente -
apaguei na linha o brilho da salamandra
consumi-me na violenta secura do visco
na espuma pulmonar da dor:
tive uma liga feita
de vermelho ouro -
respirei na sofreguidão, rubesci-me -
mas poros de chamas
perfuraram-me, cravaram orifícios
na combustão do forno onde subiam
serpentes de fumo -
Uma estação não dei fruto
nem talos, nem rebentos, nem nervos

nem uma única flor crua:
amaldiçoei
o desacerto do tempo

Com mel árido escudei o âmago
e nunca mais vi a minha amálgama
nunca mais senti a ferida –
o manto incandescente a subir o sol das costas

MAL SECRETO - Raimundo Correa

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N´alma e destrói cada illusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora,
Ver através da mascara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisivel chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez, existe
Cuja ventura unica consiste,
Em parecer aos outros venturosa!

PERPETUAÇÃO – Múcio Carneiro Leão

Fica um pouco de nós em cada verso,
Um pouco de nossa alma em cada amor :
Vamos, em nosso fado assim diverso,
Morrendo um pouco em cada novo ardor...

Quando na plenitude do Universo
Minha alma eterna reintegrada for,
Hei-de encontrar-me, ainda a fremir, disperso
Nos restos do meu sonho, agora em flor.

Essa essência de luz, que hoje é minha alma,
IÍ que me faz sentir, vibrar, viver,
No sonho ardente e na volúpia calma,

Não se ha-de sem remédio desfazer :
Ha-de ficar, para, nos céos, espalma,
Redimir, perpetuar meu próprio ser.

NÓS – Fábio Montenegro



Eu ando alheio, há muito, ao que se passa
sob a miséria e os torvelinhos da rua;
desconheço o clamor da população
e a vaidade, que em tudo tumultua.

Vivo do seu amor, da sua graça,
e adoro, sob a névoa que flutua,
através da cortina e da vidraça,
a palidez romântica da lua.

Em cada riso, em cada olhar, em cada
anseio que de ti me vem, querida,
sinto que cada vez és mais amada.

E assim, longe do mundo, refletida
tua alma na minh'alma, és alvorada
cantando o poema esplêndido da vida!

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

MAL ÍNTIMO – Lívio Barreto

Esta amargura funda, esta inclemência
Atra e brutal que me persegue, e mata,
Como umas venenosas flores cor de prata
Da minha entristecida adolescência;

Este ambiente, de corrupta essência
Onde o Tédio os seus flóculos desata;
Este vento de dor que me arrebata
Os sonhos de fulgor e transparência:

Toda esta amarga e triste decepção,
Esta da vida céptica ironia,
Esta contínua e trágica aflição,

Este simum do mal veio-me um dia,
Por não possuir, teu peito um coração
Quando no meu um coração batia!

VIAGEM – Nuno Judice

Há olhos que só olham o sonho; e, quando
o sonho se dissipa, ficam cegos.

Há pontes por onde não se passa, no inverno,
embora ninguém as guarde: pontes
sem arcos, abstractas como um arco-íris
e frias como a chuva da madrugada.

Um campo de erva que amadurece;
o feitiço fútil dos faróis quando a manhã
limpa as últimas névoas;
um bater de pálpebras como asas:

imagens que lembro

e me restituem os olhos
com que avisto a entrada da cidade.

MORAL DA HISTÓRIA – Rui Lage

Deixamos passar o outono, o inverno,
a primavera, o verão,
e fazemos de conta que lhes sobrevivemos
como se tudo não passasse
de inofensiva e reversível
sucessão.

Passeamos de mãos dadas,
temos filhos e casamos,
pedimos a reforma,
partilhamos o gelado na praia
junto à rebentação,
apertamos o casaco na gola
quando as folhas se deitam,
pisamos papoilas em caminhos
de aldeias abandonadas,
olhamos a água no tanque
quando levamos o cão à rua
de madrugada,
e dizemos: é isto a vida, é isto
o real
(e assim nos enganamos)
como meninos
livres para brincar junto do poço
enquanto a mãe não está a olhar
ou fala ao telefone,
ou prepara o almoço.

OLHEM – Violeta Parra

Olhem como sorriem
os presidentes
quando fazem promessas
ao inocente.

Olhem como oferecem
ao Sindicato
este e o outro mundo
os candidatos.

Olhem como dobram
os juramentos,
mas depois do voto
duplo tormento.

Olhem a chaleira
do vigilante
“para orvalhar com flores
o estudante”.

Olhem como reluzem
os carabineiros
“para então premiar
os obreiros”.

Olhem como se vestem
cabo e sargento
para tingir de rubro
os pavimentos.

Olhem como profanam
as sacristias
com peles e chapéus
de hipocrisia.

Olhem como embranquecem
mês de Maria
e ao pobre enegrecem
à luz do dia.

Olhem como mostram
um trabuco
para tirar do pobre
seu suco.

Olhem como se enfeitam
os funcionários
para contar as folhas
do calendário.

Olhem como sorriem,
angelicais,
olhem como esquecem
que são mortais.