sexta-feira, 29 de julho de 2016

DOIS POEMAS DE CRUZ E SOUZA

ETERNO SONHO
In O Livro Derradeiro, 1961 

“Quelle est donc cette femme? 
Je ne comprendrai pas”. 
Félix Arvers

Talvez alguém estes meus versos lendo
Não entenda que amor neles palpita,
Nem que saudade trágica, infinita
Por dentro dele sempre está vivendo.

Talvez que ela não fique percebendo
A paixão que me enleva e que me agita,
Como de uma alma dolorosa, aflita
Que um sentimento vai desfalecendo.

E talvez que ela ao ler-me, com piedade,
Diga, a sorrir, num pouco de amizade,
Boa, gentil e carinhosa e franca:

- Ah! bem conheço o teu afeto triste...
E se em minha alma o mesmo não existe,
É que tens essa cor e é que eu sou branca!
...........................................................
SATANISMO
In O Livro Derradeiro, 1961 

Não me olhes assim, branca Arethusa,
Peregrina inspiração dos meus cantares;
Não me deixes a razão vagar confusa
Ao relâmpago ideal de teus olhares.

Não me olhes, oh! não, porquanto eu penso
Envolvido no luar das minhas cismas,
Que o olhar que me dardejas — doido, imenso
Tem a rápida explosão dos aneurismas.

Não me olhes. Oh! não, que o próprio inferno
Problemático, fatal, cálido, eterno,
Nos teus olhos, mulher, se foi cravar!...

Não me olhes, oh! não, que m'entontece
Tanta luz, tanto sol - e até parece
Que tens músicas cruéis dentro do olhar!...

DESEJOS – Lourdes Sarmento

Onde meu desejo floresceu
não me encontro
quanto mais olho  atrás  de mim
fico perdida no ciclo fechado do
                                      tempo

os que me perturbaram
não têm rostos
o deserto agonizante  de mim
própria, secou a fonte das feras

então caminho

Onde meu desejo floresce
ordeno-te:
segue teu destino
à procura de outras caças
estrangulo tua voz
serpente do mal
línguas e setas envenenadas

Não  quero pensar no futuro
o futuro talvez seja o agora
o desejo floresce na minha pele

então caminho

CANÇÃO DO EXÍLIO – Mário da Silva Brito

Com a palavra construo um reino
e nele impero sem lei.
Neste mundo, que com o mundo
confina, sou senhor e servo.

No meu reino de luz e sombra
a palavra, vinda do caos,
fulge em brilho solitário
– solitário sol sem solo.

Busco a palavra, não o senso
(certo perdeste o senso!):
sarcógafo pode ser amor
e amor quer significar morte.

Rodeado de palavras estou
– falsas palavras do mundo.
Entre o dicionário e o verbo
escolho uma gleba secreta.

Envolto de lustral amplidão,
cercado de nuvens e flores,
sou exilado e sou imperador,
sou Deus esculpindo o barro.

CANÇÃO NA PLENITUDE - Lya Luft

Extraído do livro "Secreta Mirada",
Editora Mandarim - São Paulo, 1997, pág. 151.

Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)


O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.

DOIS POEMAS DE NIKA GEORGIEVNA TURBINÁ (1974-2002)

AS NOVIDADES DO DIA
(Poema escrito aos 9 anos de idade, 1983)

Espero
que alguém
me pergunte
o que vi, com quem,
onde estive.
Então abro meu livro de novidades.
Querem escutar notícias?
Quem morreu? Quem se foi?
Quem ficou sozinho...
Podemos
simplesmente ficar em silêncio?
Observemos pela janela
o último bonde que passa...
Eu realmente gosto da casa adormecida.
e quando as novidades do dia
se cobrem de pó.
Eu entendo,
não é a mim que eles esperam.
.......................
A MAMÃE
(Escrito aos sete anos, 1981)

Me faz falta
tua ternura
como o ar
para uma ave moribunda.
Me falta
o trepidar angustiado
dos teus lábios.
Quando estou sozinha,
me falta o sorriso
dos teus olhos.
Olhando para mim
teus olhos choram
Por que neste mundo a dor é tão negra?
Será porque você está sozinha?
..............................
Las novedades del día
(Escrito a los nueve años, 1983)

Espero
a que alguien
me pregunte
qué vi, con quién,
dónde estuve.
Entonces abro mi libro de novedades.
¿Quieren oír noticias?
Quién murió, quién se fue,
quién se quedó solo...
¿Podemos
simplemente quedarnos en silencio?
Observemos por la ventana
el último tranvía que pasa...
Me gusta mucho la casa adormecida.
Y cuando las novedades del día
se cubren de polvo.
Yo entiendo,
no es a mí a quien esperan.
......................
A MAMÁ
(Escrito a los siete años, 1981)

Me falta
tu ternura,
Como el aire
para un ave moribunda.
Me falta
el trepidar angustiado
de los labios tuyos
Cuando me siento sola,
me falta la sonrisa
de tus ojos.
Mirándome,
tus ojos lloran.
¿Por qué en este mundo
el dolor es tan negro?
¿Será porque estás sola?
............................................................
Leia mais sobre Nika Georgievna Turbiná em:

domingo, 24 de julho de 2016

MISTÉRIO E SEGREDO - Félix Arvers


Tradução de Olegário Mariano

Tenho um mistério na alma e um segredo na vida:
eterno amor que, num momento, apareceu.
Mal sem remédio, é dor que conservo escondida
e aquela que o inspirou nem sabe quem sou eu.

A seu lado serei sempre a sombra esquecida
de um pobre homem de quem ninguém se apercebeu.
E hei de esse amor levar ao fim da humana lida,
certo de que dei tudo e ele nada me deu.

E ela que Deus formou terna, pura e distante,
passa sem perceber o murmúrio constante
do amor que, a acompanhar-lhe os passos, seguirá.

Fiel ao dever que a fez tão fria quanto bela,
perguntará, lendo estes versos cheios dela:
— "Que mulher será esta?" — E não compreenderá.
.........................
"SONNET" Félix Arvers

Mon ame a son secret, ma vie a son mystère,
Un amour eternel en un moment conçu;
Le mal est sans espoir, aussi j'ai dú le taire,
et celle qui l'a fait n'en a jamais rien su.

Helas! j'aurai passé près d'elle inaperçu
Toujours à ses côtés et toujours solitaire;
et j'aurai jusqu'au bout fait mon temps sur la terre,
n'osant rien demander, et n'ayant rien reçu.

Pour elle, quoique Dieu l'ait faite bonne et tendre,
Elle ira son chemin, distraite, et sans entendre
Ce murmure d'amour elevé sur ses pas;

à l'austère devoir pieusement fidèle,
elle dira, lisant ces vers tout remplis d'elle,
"Quelle est donc cette femme?" et ne comprendra pas.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

UM CONSELHO DO ADMINISTRADOR DESTE BLOG


RESTOS – Ildasio Tavares

Há um resto de noite pela rua
Que se dissolve em bruma e madrugada.

Há um resto de tédio inevitável
Que se evola na tênue antemanhã.

Há um resto de sonho em cada passo
Que antes de ser se foi, já não existe.

Há um resto de ontem nas calçadas
Que foi dia de festa e fantasia.

Há um resto de mim em toda a parte
Que nunca pude ser inteiramente.

VIDA – Elza Fraga


Pobre, suja, desonrada,
pelos becos violada
por homens que nem tem rosto.
A dor, o ultraje, o desgosto
se transformam em semente.

Barriga cresce, aparece,
empina, torce, contorce
e espirra mais um ente
pra esta peste de vida...
Chega mais um pra desdita
enquanto o beco anoitece.

Demente canta cantigas
de lembranças esquecidas.
E chora ao tempo que ora
pedindo pra que esteja morto
o seu pobre anjo torto...

Mas os santos, adormecidos,
não ouvem o seu pedido
e então entre detritos
o vagido vira grito
urgência, fome de vida!

Tenta calar com um peito
seco, murcho e inútil veio.
E se consola a bendita
é só mais um nesta lida
com a tarefa maldita
de disputar com os ratos

espaço, teto e comida...

PERMANÊNCIAS – Ana Merij


o monograma atávico no linho das horas
vívido, nunca falece, menos esmaece

tua voz, como piche, gravada nas paredes
húmus-lítico nas veias, no dorso do tempo

todas as palavras ditas, todos os gestos
aderências, na pele, nos sulcos do gosto

pela madrugada nua e comprida
nessa manhã que custa a chegar
tua textura e teu sopro tatuados
nas retinas sôfregas dessa casa:
- impotente

um silêncio engasgado invade as nervuras do poema
incrustada nas fibras da página virgem, a tua imagem

dentro da dor persistes em mil fôlegos
calcinando a carne, e artérias da alma

como sentença:- tudo teu é nascente!

segunda-feira, 18 de julho de 2016

MEU SONHO – Álvares de Azevedo

Eu:
Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sangrenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso.
E galopas do vale através.
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?..
Tu escutas. Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? – que mistério,
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?
O Fantasma:
Sou o sonho da tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!..

ISMÁLIA - Alphonsus de Guimaraens

Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava longe do mar…

E como um anjo pendeu
As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…

sábado, 16 de julho de 2016

DOIS POEMAS DE MANUEL BANDEIRA

O ANEL DE VIDRO

Aquele pequenino anel que tu me deste,
– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou…
Assim também o eterno amor que prometeste,
- Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.

Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, –
Aquele pequenino anel que tu me deste,
– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou…

Não me turbou, porém, o despeito que investe
Gritando maldições contra aquilo que amou.
De ti conservo no peito a saudade celeste…
Como também guardei o pó que me ficou
Daquele pequenino anel que tu me deste…
..................................
PORQUINHO DA ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . . .

- O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.

A CHAMA – Ascenso Ferreira


na minha vida cruel e avara
és irrequieta chama clara
iluminando a solidão.
Porém, repara bem, repara
e vê se a nada se compara
o imenso horror desta aflição:
Se acaricio a chama clara
a chama queima minha mão.

POR DECORO – Artur Azevedo


Quando me esperas, palpitando amores,
e os lábios grossos e úmidos me estendes,
e do teu corpo cálido desprendes
desconhecido olor de estranhas flores;

quando, toda suspiros e fervores,
nesta prisão de músculos te prendes,
e aos meus beijos de sátiro te rendes,
furtando às rosas as purpúreas cores;

os olhos teus, inexpressivamente,
entrefechados, lânguidos, tranquilos,
olham, meu doce amor, de tal maneira,

que, se olhassem assim, publicamente,
deveria, perdoa-me, cobri-los
uma discreta folha de parreira.

AULA DE AMOR - Bertold Brecht

Tradução de Aires Graça


Mas, menina, vai com calma
Mais sedução nesse grasne:
Carnalmente eu amo a alma
E com alma eu amo a carne.

Faminto, me queria eu cheio
Não morra o cio com pudor
Amo virtude com traseiro
E no traseiro virtude pôr.

Muita menina sentiu perigo
Desde que o deus no cisne entrou
Foi com gosto ela ao castigo:
O canto do cisne ele não perdoou.

QUE MUNDO GROSSO... – Heinrich Heine

Tradução de Décio Pignatari


Que mundo grosso, gente avara,
– E mais e mais sem mais sabor!
Diz de você... o quê, amor?
Que não tem vergonha na cara.

Mundinho avaro, mundo cego,
Sempre disposto a julgar mal.
Seu beijo doce é meu apego,
Sem falar na ardência final.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

NÃO TE RENDAS JAMAIS – Eduardo Alves da Costa


Procura acrescentar um côvado
à tua altura. Que o mundo está
à míngua de valores
e um homem de estatura justifica
a existência de um milhão de pigmeus
a navegar na rota previsível
entre a impostura e a mesquinhez
dos filisteus. Ergue-te desse oceano
que dócil se derrama sobre a areia
e busca as profundezas, o tumulto
do sangue a irromper na veia
contra os diques do cinismo
e os rochedos de torpezas
que as nações antepõem a seus rebeldes.
Não te rendas jamais, nunca te entregues,
foge das redes, expande teu destino.
E caso fiques tão só que nem mesmo um cão
venha te lamber a mão,
atira-te contra as escarpas
de tua angústia e explode
em grito, em raiva, em pranto.
Porque desse teu gesto
há de nascer o Espanto.

POEMA DA BUCETA CABELUDA – Bráulio Tavares

A buceta da minha amada
tem pelos barrocos,
lúdicos, profanos.
É faminta
como o polígono-das-secas
e cheia de ritmos
como o recôncavo-baiano.

A buceta da minha amada
é cabeluda
como um tapete persa.
É um buraco-negro
bem no meio do púbis
do Universo.

A buceta da minha amada
é cabeluda,
misteriosa, sonâmbula.
É bela como uma letra grega:
é o alfa-e-ômega dos meus segredos,
é um delta ardente sob os meus dedos
e na minha língua
é lambda.

A buceta da minha amada
é um tesouro
é o Tosão de Ouro
é um tesão.
É cabeluda, e cabe, linda,
em minha mão.

A buceta da minha amada
me aperta dentro, de um tal jeito
que quase me morde;
e só não é mais cabeluda
do que as coisas que ela geme
quando a gente fode.

domingo, 10 de julho de 2016

REFLEXÃO – Solano Trindade


Vieste acender o meu fogo poético, 
E minh’alma se abriu pras grandes festas, 
A música dos teus poemas, 
Faz-me dançar o bailado, 
Da primeira mocidade... 

Eu sinto vontade de não ser sexo, 
Para brincar contigo como criança, 
E brincar de cirandinha com tu’alma. 

Mas como sou sexo, 
Vou assistir um espetáculo humano; 
A confecção de bandeiras iguais, 
Para seres que parecem diferentes.

DISCURSO – Afonso Henriques Neto


nada existe, celebremos 
a alegria. 
o nascer e o morrer 
não nos acontece. 
só para os outros 
somos espetáculo. 
há vento em excesso 
pelos buracos da linguagem. 
um jardim muito espesso 
labirinto de idéias 
flocos de imagens sobre natais de fumaça. 
nada existe, celebremos 
aventura. 
tudo se instala 
o sentido esvaziou-se do oceano 
praias da totalidade. 
o que não existe 
celebra a concretude. 
é grave a pedra 
a pele desgarrada 
o esqueleto do silêncio. 
lábios se tocam em alegria 
beijo seco 
jardim de séculos. 
quase nenhuma fala 
ninguém 
mas os caminhos. 
recordemos: 
infância veloz 
olfato de espantos 
estátua ardente arfando 
no sonho. 
apenas não há 
ninguém 
mas os espaços 
(apenas o já nascido 
previamente ido). 
infinito buraco sem tempo 
celebração.

MARCAS – Conceição Lemos


Já se faz tarde para mim... 
As marcas do tempo são refletidas no espelho 
Olho em volta e tomo um susto... 
O tempo correu e eu não percebi!!! 
Quantos momentos bons eu deixei passar... 
Sem deles me deliciar! 
Não adianta, agora, lamentar-me. 
Tanto deixei de viver o presente, 
Que agora já é passado. 
As marcas em meu rosto 
Revelam momentos de profunda tristeza... 
Vejo em ti, em tua juventude 
A estrela que devo buscar. 
Mas... és estrela distante... 
E isso me causa inquietude. 
O tempo passou para mim... 
E vejo suas marcas impregnadas em meu rosto 
O tempo passou e eu não percebi! 
Já é tarde para mim!

terça-feira, 5 de julho de 2016

A CANÇÃO DA ESPERA – Afonso Estebanez Stael

Quando deixares meu desavisado coração
não esqueças de deixar a luz da lua acesa.
Deixa a chave da esperança sobre a mesa
do quarto onde dormiu teu último verão.

Não te esqueças das romãs do teu outono
só porque as sombras do inverno te virão
como lembranças de um amor de ocasião
que não conciliava mais o próprio sono.

Talvez eu me adormeça aqui para sonhar
com o outro lado temporão da primavera
onde eu sonhar me seja estar à tua espera
doendo de um retorno de qualquer lugar.

Estarei dividindo com as águas do riacho
uma breve canção de prazer e sofrimento
sobre a vida refeita de pena sem lamento
o coração envolto no seu próprio abraço.

DOIS SONETOS DE ALEXANDRE O’NEILL

SONETO A DUAS MÃOS – Alexandre O’Neill

A mão que me sustenta e eu sustento
é mão capaz das vinte e cinco linhas
e do selado azul de um requerimento
ou doutras diligências comesinhas...

Habituada por secretarias,
esperta, decidiu de um grave acento,
a vírgulas guindou torpes cedilhas
e mastigou papel, seu alimento...

Contraiu calos, revoltou-se às vezes,
contra certos despachos, tão soezes
que até o dedo auricular se ria...

Com dois dedos de aumento se curvava
e logo, altiva, à esquerda se mostrava... Agora?
Estão as duas na poesia...
.....................................
A MORTE, ESSE LUGAR-COMUM – Alexandre O’Neill

É trivial a morte e há muito se sabe 
fazer — e muito a tempo! — o trivial. 
Se não fui eu quem veio no jornal, 
foi uma tosse a menos na cidade... 

A caminho do verme, uma beldade 
— não dirias assim, Gomes Leal? — 
vai ser coberta pela mesma cal 
que tapa a mais intensa fealdade. 

Um crocitar de corvo fica bem 
neste anúncio de morte para alguém 
que não vê n′alheia sorte a própria sorte... 

Mas por que não dizer, com maior nojo, 
que um menino saiu do imenso bojo 
de sua mãe, para esperar a morte?...

domingo, 3 de julho de 2016

INGRATO – Dom Pedro de Alcântara


Não maldigo o rigor de minha sorte,
Por mais feroz que fosse e sem piedade,
Arrancando-me o trono e a majestade
Quando a dois passos só estou da morte

Do jugo das paixões minha alma forte
Conhece bem a estulta vaidade,
Que hoje nos dá contínua felicidade
E amanhã nem um bem que nos conforte.

Mas a dor que excrucia e que maltrata,
A dor cruel que o ânimo deplora,
Que fere o coração e quase o mata,

É ver na mão cuspir, à extrema hora,
A mesma boca, aduladora e ingrata,
Que tantos beijos nela deu outrora.

ENCANTAMENTO - Abgar Renault


Ante o deslumbramento do teu vulto
sou ferido de atônita surpresa
e vejo que uma auréola de beleza
dissolve em lua a treva em que me oculto.

Estás em cada reza do meu culto,
sonhas na minha lânguida tristeza,
e, disperso por toda a natureza,
paira o deslumbramento do teu vulto.

É tua vida a minha própria vida,
e trago em mim tua alma adormecida...
Mas, num mistério surdo que me assombra,

Tu és, às minhas mãos, fluida, fugace,
como um sonho que nunca se sonhasse
ou como a sombra vã de uma outra sombra...