sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Contra o que quer que esteja invadindo - Charles Simic

Tradução de Adriano Scandolara

O melhor de tudo é o ócio,
E mais ainda numa quinta,
E sorver vinho enquanto se estuda a luz:
Como ela envelhece, amarela, empalidece
E então hesita para sempre
No limiar da noite
Que podia ser a que trará a primeira geada.

É bom ter uma mulher consigo nesta hora,
E duas é melhor ainda.
Que sussurrem uma para a outra
E te olhem com um sorrisinho.
Que arregacem as mangas e desabotoem um pouco as blusas
Como merece esse bom e velho pôr-do-sol,

E o garotinho em idade escolar
Que voltou para casa para um quarto quase escuro
E agora assiste de olhar arregalado
Os adultos erguerem-lhe suas taças,
A mulher ruiva, toda zonza
Com os olhos bem cerrados,
Como se prestes a irromper em choro ou canto.

Rapsódia sobre uma noite de vento – T. S. Eliot


Tradução de Ivan Junqueira

Meia-noite.
Uma síntese lunar captura
Todas as fases da rua,
Sussurrantes sortilégios lunares
Dissolvem os planos da memória
E todas as suas límpidas tramas,
Divisões e precisos mecanismos.
Cada lampião que ultrapasso
Pulsa como um tambor fatídico,
E através das lacunas do escuro
A meia-noite golpeia a memória
Como um louco brande um gerânio morto.

Uma e meia,
O lampião cuspia,
O lampião resmungava,
O lampião dizia: “Olha aquela mulher
Ao teu encontro hesitante à luz da porta
Que a recorta como um riso escarninho.
Repara-lhe a barra do vestido
Rasgada e suja de areia,
E o canto de seu olho que se arqueia
Como um grampo retorcido.”

A memória expele e disseca
Um turbilhão de coisas tortas;
Um ramo tortuoso sobre a praia
Polidamente carcomido e cinzelado
Como se o mundo erguesse à superfície
O segredo de seu esqueleto,
Rígido e alvadio.
A mola espatifada no pátio de uma fábrica,
A ferrugem que se aferra à forma
Que a força deixou tensa e enrodilhada
E pronta a abocanhar com uma dentada.

Duas e meia,
O lampião dizia:
“Observa o gato que na calha se adelgaça,
Espicha a sua língua e saboreia
Um naco rançoso de manteiga.”
Tal a mão do menino, automática,
Surripiou e embolsou um brinquedo
Que ao longo do cais deslizava.
Eu nada podia ver atrás dos olhos do menino.
Tenho visto pela rua olhos que tentam
Emergir por entre iluminadas persianas,
E certa tarde um caranguejo vi na lama,
Um velho caranguejo em sua carcaça calcária
A agarrar-se à ponta do graveto que eu sustinha.

Três e meia,
O lampião cuspia,
O lampião no escuro resmungava,
O lampião zumbia:
“Olha a lua,
La lune ne garde aucune rancune.
Pisca um olho tímido,
Sorri pelas esquinas.
Alisa os cabelos de gramínea.
A lua perdeu a memória.
Bexigas descoradas ulceram-lhe a face.
Suas mãos retorcem uma rosa de papel
Que recende a pó e água-de-colônia.
Ela está só, em companhia
De todos os antigos eflúvios noturnos
Que lhe cruzam e entrecruzam o cérebro.”
Aflora a reminiscência
De secos gerânios pálidos
E de poeira nas frinchas,
Aroma de castanhas pela rua,
E odor de fêmea nas alcovas clandestinas,
E de cigarros pelos corredores
E de coquetéis nos bares.

O lampião disse:
“Quatro horas,
Eis o número sobre a porta.
Memória!
Tens a chave,
A luminária alastra um círculo na escada.
Sobe.
A cama é franca; a escova de dentes na parede pende,
Põe teus sapatos junto à porta, dorme, a vida te talha”.

O último talho da navalha.

Presságios - Dahlia Ravikovitch

Tradução de Adriano Scandolara

Quando o copo cai
um caco dispara,
e um papel escorrega,
e algo mexe ou se move,
e algo se parte em sua estrutura ––
é preciso ficar sempre de guarda.

Agora escrevo e paro
para pensar
quantas folhas de papel entalaram na minha garganta.
Eu, se assim posso dizer, não sou mais eu.
Estou partida, definhando rápido.
Um tremor no ar. Falta um padrão.
Talvez seja eu que caia depressa.

E eu me recuso a acreditar.
Simplesmente me recuso a ver.

Som tardio – John Ashbery

Tradução de Duda Machado

A sós com nossa loucura e flor favorita
Vemos que não sobra mesmo nada sobre que escrever
Ou seja, é preciso escrever sobre as mesmas coisas de sempre
Ao mesmo custo, repetindo sempre e sempre as mesmas coisas
Para o amor continuar e ser pouco a pouco diferente.

Colmeias e formigas têm que ser reexaminadas eternamente
E a cor do dia fixada
Centenas de vezes e variada do verão ao inverno
Até ser modulada ao compasso de uma autêntica
Sarabanda que se agita ali, viva e em repouso.

Só assim pode a crônica desatenção de nossas vidas
dispor a nosso redor - conciliatória
E com um olho nessas longas brônzeo-aveludadas sombras
Que falam tão fundo ao despreparado conhecimento
De nós mesmos – o que dizem os instrumentos de nosso dia.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Mulheres de amigos - Kurt Tucholsky

Tradução de Paulo César Souza

Mulheres de amigos destroem a amizade
No princípio ocupam timidamente uma parte do amigo
Aninham-se nele,
Aguardam,
Observam, e aparentemente participam do círculo.

Esse pedaço do amigo não nos pertencia –
Nada notamos.
Mas logo a coisa muda:
Elas tomam um aposento após o outro,
Penetram mais fundo,
Logo têm o amigo inteiro.

Ele está mudado;
é como se tivesse vergonha de sua amizade.
Assim como antes envergonhava-se do amor diante de nós,
Agora envergonha-se da amizade diante do amor.
Não nos pertence mais.
Ela já não está entre nós – já o levou.

Ele não é mais nosso amigo:
É o seu marido.
Um leve melindre permanece.
Tristemente o seguimos com os olhos.

A da cama tem sempre razão.

Cidade - Rafael Rocha

Atravesso as avenidas da cidade como quem chega
De algum lugar onde a cidade não havia
Paro em frente aos prédios mais antigos
E neles a minha lembrança enxerga
Os passados enterrados em suas paredes

De algum lugar onde a cidade não havia
Eu dobro as esquinas nessa caminhada
Como alguém que chega pensando em partir
E sento ao meio-fio de suas calçadas
Observando os fantasmas de sua melancolia

Na chegada caminho pelas ruas estreitas da cidade
E penso em escrever um poema onde antes
Existia um cinema ou uma casa antiga
Mas desse lugar onde a cidade existia
Os versos ficam escondidos e sem ritmos

E dentro da noite vejo a cidade verdadeira
Sem disfarces e sem inquietações
Os boêmios nos bares e as putas
Zanzando em busca do som mais ignorado
Do silêncio de suas amarguras

O poema ao nascer tem o cheiro das avenidas
Marcadas pelas carcaças dos velhos edifícios
Dos lugares onde a cidade não havia
Assim resolvo ser o cidadão envelhecido
Dentro de suas ruelas e esquinas vazias.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Esvoaçante – Ivan Maia

A poesia lança suas metáforas na vida dos homens
Com uma liberdade tão inocente para fazer sentido
Que tudo que foi sentido no peito
Procura agora palavra que o leve
Além de tudo que está posto

Até o momento em que
Transposto em verso
O querer saiba falar de si
Como de alguém até aí desconhecido...

Só então escutará seu próprio ritmo
Como quem dança uma liberdade nova
Recém-nascida do encontro
com o pulsar do instante...

A poesia dança em suas metáforas
A descoberta de um mundo
Até então ocultado a sua sensibilidade
Como um pássaro cujas asas
Inventam seu primeiro voo.

Inquietude – Laura Limeira

Passeio nas ruas, atravesso avenidas
Dobro esquinas, caminho nas calçadas
O tempo claro tornou-se escuro
E a chuva miúda vai espalhando
Um cheiro agradável de terra molhada...

O tempo nublado e a melancolia
Faz-me sentir triste, vazia...
Na rua, o barulho é tremendo!
Caminho apressada, com medo de tudo
Tomo um café na esquina
Arrumo o casaco, e sigo em frente...

Entro na loja e te busco entre aromas
Colônias, sabonetes, loções...
Volto para casa, escrevo um poema
Escuto aquela nossa música
Você está tão longe...

Escuto o telefone, quem dera fosse você...
Abro a caixa dos correios e não há nada lá
Tomo um banho, coloco o nosso perfume
Entro no quarto e deito-me à relaxar
Mas tua foto sorri na cabeceira da cama
Deixando-me nervosa a me desequilibrar...

A noite adentrou na madrugada
E a cidade lá fora continua nublada
Há muito a saudade só atormenta
Roubando-me a paz, deixando-me insone
Fazendo-me zanzar para lá e para cá
Deixando-me inquieta pelos cantos da casa
Nos recantos que há...

Insisto em escrever, tento ler
Aquietar-me...desisto!
Retorno às ruas, passeio, atravesso avenidas
Dobro esquinas, caminho nas calçadas...

O desvio – Yêda Schmaltz

A mim pouco me importa
aberta ou fechada a porta,
vou entrar.

E pouco me importa estar
sendo amada ou não amada:
vou amar.

Que a mim me importa tanto
eu mesma e o sentimento,
quanto!

A mim pouco me importa
se a tua amada é doente,
se a tua esperança é morta.

E me importa muito menos
se aceitas solenemente
a nossa vida parca e torta.

Porque a mim me importaria
deixasse de ser eu mesma
e a poesia.

A mim pouco me importa
se a lira quebrou a corda:
vou cantar.

E pouco me importa estar
no picadeiro do circo:
vou rodar.

Que a mim me importa tanto
eu mesma e o sentimento,
quanto!

A mim pouco me importa
se estamos todos presos
por uma invisível corda.

E me importa muito menos
sermos todos indefesos
ante o destino que corta.

Porque a mim me importaria
deixasse de ser eu mesma
e a poesia.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Dúvida de Electra – Delfina Acosta

Acaso essa mulher - creio tê-la visto sempre -,
que me olha do meu modo
desde aquele imenso espelho,
que ostenta meu vestido azul
e leva este lenço
de cor dando voltas
em ondas pelos ombros
- parecia mais contente instantes atrás -,
não sou eu.
É possível duvidar dos espelhos?
E da calóptrica e suas leis?
E das imagens sensatas?
Anos que levo mirando-me em seus rostos,
duvidando seriamente de sua fidelidade.
Anteontem o busto de Ifigênia, filha de Agamenon,
Rei de Micenas e de Argos,
nesta manhã, Joana, embandeirada e resoluta,
Virginia Woolf de tarde, pasmada de mar,
amamentando crustáceos.
Agora, quem se atreverá a dizer-me
que essa mulher aqui diante
e sentada frente ao espelho,
sou eu, setenta vezes eu,
sem mirar-se antes nele?

Os burgueses – Carlos Ordoñez

Eu os vi rindo
mas são sérios e certeiros,
meditam na cor dos domingos,
contemplam as fábricas e os sinais de fumaça
de seus empregados,
caminham devagar,
saúdam amavelmente os juízes,
lêem a Bíblia em suas camas de água,
adoram o som da bachata e escutam
música de protesto
quando viajam em seus carros de vidros escuros.
Suas mansões têm caminhos inexplorados,
pátios para perder-se a cavalo
e amorosos mastins educados
por assistentes ingleses.
Os burgueses aprendem a conviver
com os miseráveis,
depositam cheques em branco para a esmola da igreja,
assistem a ópera e leem Romeu e Julieta,
organizam saraus e nunca entendem
os poemas de Vallejo,
contemplam sua beleza nos espelhos iluminados
e nos cristais da sala,
e depois, quando a noite desce,
sentem-se felizes e invencíveis,
porque acreditam que durante o dia
foram bons cristãos,
então dormem como corujas
nadando em um mar de puro ouro e espanto.

Mundos– Bella Clara Ventura

Vou deixando mundos para trás,
pedaços de mim
feito lembranças
no rio vivo da existência
onde me acomodo a cada passo
no trajeto liberado
em sombras
no sentido de uma luz
que acompanha o crescimento.
E sigo sendo esta menina,
no acalanto de sonhos
a cavalgar ausências.
Esses universos que vão sendo abandonados
à medida que viro a página.
Jamais abandono o livro,
sagrado em seus textos,
são os próprios
escritos a punho
quando desmascaro
a vivência.
Aproximo-me dos fins de um ciclo.
No ar
a distância recupero,
me finco
em novas estratosferas
onde cabem minha pegadas,
de reclamos,
vestígios da ternura
que ainda me habita,
apesar de ter restado
horas em cada trecho
para multiplicar meus bens
no mealheiro da memória.